Barrense foi resgatado de trabalho em regime de escravidão em fazenda no estado do Pará
Redação RapaduraNews
Com outros 81
trabalhadores rurais, o piauiense Francisco das Chagas da Silva Lira 38 anos,
natural do município de Barras, estado do Piauí, foi resgatado pela fiscalização do Ministério
do Trabalho da condição análoga à de escravo em 2000. Ele limpava o pasto da
fazenda Brasil Verde, em Sapucaia, no Pará, a 733 km de Belém. O caso foi parar
na Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional da OEA
(Organização dos Estados Americanos), que condenou o Brasil por omissão e
negligência aos trabalhadores.
Em relatos feitos para reportagem da Folha de S.
Paulo, o piauiense relata abusos e violência:
O pior dia foi quando o fiscal (funcionário da
fazenda) quis queimar o rapaz. Era madrugada, ainda estava preparando o café da
moçada quando o fiscal perguntou de um dos nossos colegas. Éramos 12
trabalhadores rurais no grupo. Falei que o cabra estava mal, nem conseguia
levantar da rede. Daí o fiscal ficou bravo.
Com um pedaço de ferro, pegou uma brasa e partiu
para queimar o menino. Eu disse para ele: "Não leve, não. Se levar, você
morre".
O rapaz já era escravo, ainda ia ser queimado por
um tição de fogo? Você não faz isso com ninguém, nem com bicho. Se machucasse
um de nós, os outros iam reagir. E os fiscais tinham armas. Ia dar o pior de
tudo. Ele deixou a brasa, mas foi até a rede e sacudiu para o cara levantar.
O convite para trabalhar na fazenda Brasil Verde,
em Sapucaia, no Pará, partiu de Meladinho (apelido do aliciador que contratou
os trabalhadores em outro Estado). Ele prometeu um salário mínimo (na época de
R$ 151) para cuidar do pasto e do gado, com alojamento e equipamentos de
trabalho.
Na necessidade, você aceita tudo. Fui para o mundo
com outros desempregados aqui de Barras (PI). A intenção era mandar dinheiro
para a família. Viajamos dois dias de ônibus e trem, sempre à noite. Quando
chegamos na Brasil Verde, era tudo diferente.
O alojamento era um barraco de lona, sem paredes,
fogão, banheiro, pia, luz elétrica. Não tinha nada. Um fiscal vigiava a gente o
tempo todo. Às 4h da manhã, ele colocava os holofotes (farol) do carro dentro
do barracão. Todos os dias, eu preparava o café da moçada. Se a gente não
fizesse, não comia. Cansamos de andar até 20 quilômetros à pé para chegar ao
trabalho, com chuva ou sem.
O mato não era baixo como o Meladinho tinha
prometido. Era uma juquira alta (mato que cresce no pasto), serviço para
trator. Um dos trabalhadores fez a conta: cada um de nós estava ganhando R$
0,75 por dia.
Parávamos por volta de meio-dia para comer. Era
arroz com mandioca, fria, sem gosto. Como a gente comia no tempo (à céu
aberto), a água misturava na marmita. Nem tinha apetite para comer aquilo ali.
Trabalhávamos até anoitecer.
Um dia, um temporal tomou o céu. Era uma chuva de
raios. Eu e mais três roçávamos perto de uma cerca elétrica e decidimos
retornar ao barraco, com medo. Eram 14h30. Mal entramos e o fiscal veio para
cima.
Não adiantou explicar, o fiscal obrigou a gente a
voltar. Deu o pior. Um trovão caiu perto da gente e cada um caiu para um lado.
Nem sei explicar o que senti. O fiscal fez a gente levantar e retomar o
serviço.
Teve dia que voltei para o barracão pisando com o
calcanhar. Não sei se era umidade, calor ou alguma outra coisa, mas todos nós
pegamos uma doença, a "rói-rói", que dava uma coceira insuportável e
comia a carne dos pés. Tinha dedo que ficava no osso. Mas não dava para
reclamar. O que é um trabalhador na frente de uma arma?
Nunca disseram: "Rapaz, vocês estão
trabalhando muito, vou valorizar o serviço de vocês". Todo mundo precisa
ser prestigiado.
RESGATE
Lembro que no meu último dia lá fiz um serviço
ruim, que era roçar um mato muito alto. Já passava das 15h quando um fiscal
veio dizer que a [Polícia] Federal queria falar com a gente.
"Vocês vão lá e, se perguntarem alguma coisa,
diz que está tudo bem". Na hora pensei: "Já sei por onde começar, a
vez que quiseram queimar o menino". Lembro também de ter falado:
"Quero ir embora, não aguento mais".
Os policiais chegaram até nós porque dois
trabalhadores, de um outro grupo, apanharam dos fiscais na sede da fazenda. Por
sorte, conseguiram fugir até a cidade e denunciaram.
A Federal levou a gente até o barraco num carro de
boi, cheio de lama e fezes. Lá, disseram que não trabalhávamos mais na fazenda
e que deveríamos ficar juntos até o dia seguinte, quando voltariam para nos buscar.
Eles precisavam acertar o transporte, acomodação e
alimentação para 82 pessoas. Aconselharam a não sair do barraco e não andar
sozinho, porque os donos poderiam querer se vingar. Você acha que alguém dormiu
naquela madrugada?
Não era a primeira vez dos policiais naquela
fazenda, contaram. Outros já tinham sido resgatados de trabalho escravo
contemporâneo ali. Na época, em 2000, não tinha consciência do que era trabalho
forçado, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva.
Já tinha ouvido falar de trabalho escravo na
televisão, mas pensava que escravidão era castigo para quem faz mal ao outro.
Mas não. Escravo é sofrer, passar fome, necessidade, ser mandado toda hora. Não
quero uma vida de escravo para ninguém.
PROCESSO
A condenação do Brasil na Corte Interamericana de
Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos), por negligência
e omissão aos trabalhadores, foi a primeira vez que o tribunal condenou um país
por trabalho escravo contemporâneo. Desde 1995, mais 50 mil pessoas foram
resgatadas no país.
Na sentença, a Corte pediu ainda a reabertura do
processo criminal, que envolve o dono das terras, o paulista João Luiz
Quagliato Neto, até hoje um importante nome do agronegócio brasileiro.
"Temos a tradição de dar cumprimento à decisões
da Corte", diz Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, subprocuradora-geral da
República. Em março ela deu encaminhamento à reabertura da investigação.
Em 1988, denúncia feita pela Comissão Pastoral da
Terra ao governo brasileiro já falava do crime naquelas terras, onde se cria
gado, e do desaparecimento de dois adolescentes.
Desde então fiscalizações da Polícia Federal e do
Ministério do Trabalho encontraram violações trabalhistas na Brasil Verde –em
1989, 1993, 1996 e 1997.
Procurado, o advogado de Quagliato não se
pronunciou até a conclusão desta edição. Em entrevista a
esta Folha em 1998, o pecuarista negou a ocorrência de trabalho
escravo na sua fazenda.
Fonte: Folha de São Paulo
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